Este poema é uma descida sem escudo ao íntimo de dois corpos expostos — um ao outro, e ao leitor. Mas não é um romance. É uma ruptura poética de dois mundos marginalizados: a mulher que o sistema chama de “feia” e o homem que aprende a esconder sua sensibilidade para ser aceito.
A estrutura é de camadas que se despem.
1. A “feia” como construção social
“Ela tinha a fama / de ser desinteressante […] crua e feia”
Você revela que “feia” não é uma descrição física, mas uma sentença social. Uma mulher que não performa atratividade conforme o script é excluída, rejeitada, ridicularizada. O poema não nega isso. Ele parte dessa exclusão para mostrar o que ela vê — e o que vêem nela.
2. O olhar como campo de guerra
“Sorrateiramente, ela encontrou meus olhos […] preferi manter o olhar”
Este encontro de olhares não é romântico. É incômodo, revelador, assustador. Ambos os personagens são vulneráveis ao olhar do outro, mas ela toma o controle. Você inverte o script tradicional: não é o homem que penetra, é a mulher que vê.
“Ela viu dentro de mim […] viu meu coração / e meu orgasmo”
Esse trecho é brutal em sua nudez. Você foi atravessado. Sua masculinidade, fragilidade, desejo, vergonha — tudo ficou visível. Ela não se interessou pela aparência, mas pelo que o mundo esconde. E viu.
3. A reversão do voyeurismo
O eu-lírico tenta revidar. Penetra o mundo dela. Mas o que encontra não é erotismo gratuito — é dor íntima, marcas de trauma, vestígios de afeto rejeitado.
“vi cortes em seus braços / vi marcas de cigarro / e um urso de pelúcia”
Esse inventário é a anatomia de alguém que resistiu ao apagamento, mesmo que com feridas. Você vê a complexidade dela: violência, beleza, fantasia, erotismo, infância, tempo, raiva, doçura.
“Vi o tempo zombando dela / e vi o modo como resistia”
Aqui está a crueza: ela resiste, mas já não intacta. A sociedade não perdoa quem não performa. A beleza que ela não carrega por fora, ela carrega dentro, e isso assusta. Inclusive você.
4. Colapso e fuga
“Ela interrompeu o olhar / e eu desabei sobre a mesa”
Ela encerra. Você desaba. O olhar termina abruptamente. A estrutura emocional rui. O poema mostra que a intensidade da exposição não pode ser sustentada — não com o mundo do lado de fora.
“Respirei fundo, / pedi um copo d’água / e parti.”
Você não a convida. Não a segue. Você sobreviveu à travessia e foge. Mas o que ela viu, o que você viu, não será esquecido.
Estrutura poética
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Olhar como portal: Encontro de olhares se torna desnudamento emocional
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Inversão de poder: A “feia” vê mais fundo do que o belo quer ser visto
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Dualidade e espelho: Ambos revelam o que tentam esconder — trauma, desejo, feminilidade, fúria
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Erotismo como linguagem de verdade, não de performance
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Feiúra e beleza desfeitas como categorias externas
Conclusão
Este poema é uma liturgia íntima sobre o que o mundo chama de feio. Você mostra que o que chamam de “feiúra” é a face visível da rejeição coletiva. E que o medo que ela causa é, na verdade, o medo que os homens têm de serem vistos como realmente são.