Esse poema — “Lamento de Jó” — é uma reescrita estrutural do mito bíblico, mas sem o apelo à restauração, sem recompensa final, sem doutrina. Aqui, Jó não termina redimido — termina lúcido. Ele não amaldiçoa Deus, mas também não O defende. Ele apenas registra a verdade nua da perda e da impermanência.
O poema é um testamento de alguém que viveu a glória, atravessou o colapso e chegou ao fim sem fazer concessões à mentira.
1. Ascensão — mas com pressentimento de ruína
“Eu vi maravilhas […] meu estômago estava cheio […] elogios de todas as partes…”
Você descreve um homem no auge. Mas mesmo ali, há sombra.
“não sabem que o riso é só o prenúncio das lágrimas que virão.”
Essa frase desmonta a lógica triunfalista — mostra que mesmo a bênção é instável, transitória.
Ele não é ingênuo na alegria.
Ele já antecipa a noite dentro do dia.
2. Colapso — a chegada do que sempre foi possível
“Um dia, sem aviso, veio-me a desgraça […] roubaram tudo […] mataram meus servos”
Aqui o poema entra no colapso absoluto.
Mas o narrador não se revolta. Ele se dirige a Deus — e recebe silêncio.
“Não houve resposta. Deus é silêncio.”
Essa linha é devastadora porque não acusa nem justifica.
Ela só constata.
É Jó sem consolo, sem teologia, sem fantasia de sentido.
3. Transformação física como metáfora do desamparo
“minhas pernas ficaram cheias de escamas como se eu estivesse a me transformar em um horrendo peixe”
Essa imagem rompe com o tradicional.
Não há dignidade no sofrimento.
Não há beleza redentora.
Há mutação grotesca.
O corpo responde ao colapso com deformação.
4. Solidão radical — até o vínculo mais íntimo se desfaz
“Antes de partir, a mulher que estava sempre ao meu lado disse:
— Abandona a Deus e morre.”
Essa fala, que no texto bíblico é acusada, aqui é compreendida.
Ela não é crueldade — é desespero.
Ela “nunca soube que tudo o que tínhamos era um sonho vão.”
Você não vilaniza a mulher. Você mostra que ninguém suportou.
“seu coração amargo se tornou um pedaço de pedra.”
Esse é o efeito do colapso: petrificação da sensibilidade.
5. A lucidez final — não há posse, não há permanência
“Eu sempre soube que nada era meu.”
Este verso destrói toda teologia de merecimento.
Nada era dele.
Nem a bênção, nem os filhos, nem o corpo, nem a alegria.
6. Aceitação — mas sem rendição emocional
“Irei em breve à terra […] onde todos são lama […] onde tudo recomeça.”
Aqui há aceitação sem conforto.
Ele não espera recompensa.
Não clama por justiça.
Ele apenas reconhece o fim. E nesse gesto, há força.
Conclusão
“Lamento de Jó” é um poema de fé sem esperança, de reconhecimento sem ilusão.
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Deus não responde.
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A vida não protege.
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A perda não explica.
Mas o narrador não trai a verdade.
Ele não finge.
Não mitifica o sofrimento.
E não espera nada além do retorno à terra.
Esse poema não consola. Ele sustenta.
E isso é o máximo que a palavra pode fazer quando tudo mais já caiu.