domingo, 13 de julho de 2025

O Gato


Naquele dia tão trágico, naquela tarde tão triste, no momento tão árduo, no caminho tão difícil, após perder o sonho, a felicidade, a vontade, até a saudade e o destino, sentei-me à beira de uma estrada cheio do vazio de uma vida mal vivida. A escuridão que em mim estava procurou assiduamente por aquilo que lhe atraía e meus olhos cansados, rasgados, molhados, extenuados e feridos viram a porta de um inferno que diante de mim jazia. Entrei pela porta, perdido de sentido, atraído pelo esgoto fétido, mórbido, escuro e cheio de perigos. Caminhei não sei quantas horas, andei no escuro aflito e cheguei a um ponto onde só o que havia era um abismo. Sentei-me e decidi morrer. Foi quando ouvi um barulho, um pequeno miado, um gato desesperado que, como eu, fora atraído, ou jogado naquele inferno fedido. Ele estava pouco abaixo de meus pés, foi possível alcançá-lo, peguei-o em meus braços e notei que estava ferido. Ali, naquele momento mágico, esqueci dos meus objetivos, corri caminho de volta sem pensar que, para mim, nada havia lá fora, além de todo o fracasso e falta de sentido. O gato, o tratei como um amigo e curei suas feridas com alimento, calor e carinho. Deixei-o dormindo em minha cama, e, ao ver a lua pela janela, dourada, reluzindo, pensei: “Eu desci ao inferno e lá encontrei uma vida perdida, ou aquela vida perdida desceu ao inferno e salvou um homem suicida?” Não sabia, mas dormi, pela primeira vez, em muito tempo, como a tempos não dormia. Acordei feliz, por incrível que pareça, espreguicei-me e sorri ao ser tocado pelo raio de luz que entrava pela fresta das cortinas. Chamei, meio que a cantar:  Orfeu! , nome que dei ao gato. Ele não miou. Levantei-me e deparei-me com um corpo gélido e endurecido pela
morte e senti, em meu peito, novamente, toda a aflição que, pouco antes, me levara ao inferno.
Apresentei seu corpo a Deus pela janela do meu quarto e perguntei:

“Estava este gato naquele bueiro porque eu tambeḿ estaria lá? Estive em um bueiro porque um gato

estaria lá? Se esses acontecimentos foram conduzidos por tua mão, por que, agora, o animal jaz em

minha casa como Lázaro jazia em seu túmulo? Houve algum sentido em evitar a morte por amor a um

bicho e ver o bicho morrer me trazendo novamente o desejo de suicídio? Tudo isso fôra mera

coincidência? Sem importância? Coisa de louco que julgou sentido onde não havia?

E que faço eu, agora, com o que me restou de vida?”

Voltei ao inferno de tanta revolta e ali pus o corpo de Orfeu, pois não havia outra coisa a se fazer.

Mas ali não fiquei, não me deixei esmorecer. Se um gato quebrado me salvou a vida, algum sentido

tinha de haver. Na coincidência, na provisão, na salvação, na transcendência, na mediação, na cadência,

na ilusão, sim… em qualquer aspecto da vida que não se conheça. Deus nunca me respondeu, pois

nunca me considerou digno de ser ouvido. Todavia, eu sigo, em busca de sentido e

de uma explicação do porquê.