domingo, 13 de julho de 2025

A feia


Outro dia vi, na rua de baixo, a moça triste que olhava as árvores  pela janela de seu quarto.


Alguém lhe havia rejeitado

de maneira muito humilhante

na frente de muitos jovens 

do bairro.


Ela tinha a fama 

de ser desinteressante, 

de fato, uma pessoa crua e feia.


Por isso os moços da sua idade

não pareciam ter vontade 

de estar com ela.


Sentei-me num banco do bar do Jorge

e olhei-a por um tempo,

distraída em seus pensamentos.


O cabelo tentava cair pelo rosto

assimétrico,

mas era rebelde até consigo mesmo.

Os olhos eram fundos como se

houvessem sobrevivido a uma guerra.


Sorrateiramente, ela encontrou meus olhos,

como um animal que surpreende a presa.


Queria disfarçar, mas não pude,

era tarde, 

preferi manter o olhar 

e não fugir dos olhos dela.


Ela viu dentro de mim 

com seus olhos amarelos,

viu medo,

viu desejo,

desespero e espera.


Viu minha ganância,

minha aflição,

viu meu coração

e meu orgasmo.


Viu meu medo de ser rejeitado,

viu meu sonho mais privado.

Me viu nu.


Viu minha sensibilidade,

minha fúria,

minha masculinidade,

minhas mágoas.


Viu minha feminilidade 

que tentava se esconder.


Tentei resistir um pouco,

mas ela persistia,

parece que buscava

beleza ou, até mesmo,

coisa feia

dentro de mim.


Soltei-me por inteiro,

deixei-a me sondar

e aproveitei o momento 

para entrar 

no seu íntimo.


Eu vi o escuro de um quarto

e lágrimas em uma folha de papel.

Vi cortes em seus braços,

vi marcas de cigarro

e um urso de pelúcia.


Vi uma calcinha branca com renda, 

vi flores 

e um vestido de seda.


Vi-a rejeitando homens 

que só existiam 

em seu pensamento.


Vi-a esmurrando o muro.

Vi-a nos cacos de um espelho.


Não podia mais suportar

aquilo,

mas, ao mesmo tempo, 

ela prosseguia em mim,

então, eu prossegui 

nela.


Vi seu ventre gerar a vida

e homens saciando-se 

em seus seios.


Vi o fluxo em suas pernas

como uma rosa vermelha.


Eu vi bondade e vi tristeza,

vi o ódio e a vingança.

Eu vi um dia da infância

e uma fita de cabelos 

amarela.


Eu vi o tempo zombando dela

e vi o modo como resistia,

não sem sequelas.


Ela interrompeu o olhar

e eu desabei sobre a mesa.


A última coisa que vi

foi a janela bater 

como que a ferir minha cara.


Respirei fundo, 

pedi um copo d’água

e parti.