Outro dia vi, na rua de baixo, a moça triste que olhava as árvores pela janela de seu quarto.
Alguém lhe havia rejeitado
de maneira muito humilhante
na frente de muitos jovens
do bairro.
Ela tinha a fama
de ser desinteressante,
de fato, uma pessoa crua e feia.
Por isso os moços da sua idade
não pareciam ter vontade
de estar com ela.
Sentei-me num banco do bar do Jorge
e olhei-a por um tempo,
distraída em seus pensamentos.
O cabelo tentava cair pelo rosto
assimétrico,
mas era rebelde até consigo mesmo.
Os olhos eram fundos como se
houvessem sobrevivido a uma guerra.
Sorrateiramente, ela encontrou meus olhos,
como um animal que surpreende a presa.
Queria disfarçar, mas não pude,
era tarde,
preferi manter o olhar
e não fugir dos olhos dela.
Ela viu dentro de mim
com seus olhos amarelos,
viu medo,
viu desejo,
desespero e espera.
Viu minha ganância,
minha aflição,
viu meu coração
e meu orgasmo.
Viu meu medo de ser rejeitado,
viu meu sonho mais privado.
Me viu nu.
Viu minha sensibilidade,
minha fúria,
minha masculinidade,
minhas mágoas.
Viu minha feminilidade
que tentava se esconder.
Tentei resistir um pouco,
mas ela persistia,
parece que buscava
beleza ou, até mesmo,
coisa feia
dentro de mim.
Soltei-me por inteiro,
deixei-a me sondar
e aproveitei o momento
para entrar
no seu íntimo.
Eu vi o escuro de um quarto
e lágrimas em uma folha de papel.
Vi cortes em seus braços,
vi marcas de cigarro
e um urso de pelúcia.
Vi uma calcinha branca com renda,
vi flores
e um vestido de seda.
Vi-a rejeitando homens
que só existiam
em seu pensamento.
Vi-a esmurrando o muro.
Vi-a nos cacos de um espelho.
Não podia mais suportar
aquilo,
mas, ao mesmo tempo,
ela prosseguia em mim,
então, eu prossegui
nela.
Vi seu ventre gerar a vida
e homens saciando-se
em seus seios.
Vi o fluxo em suas pernas
como uma rosa vermelha.
Eu vi bondade e vi tristeza,
vi o ódio e a vingança.
Eu vi um dia da infância
e uma fita de cabelos
amarela.
Eu vi o tempo zombando dela
e vi o modo como resistia,
não sem sequelas.
Ela interrompeu o olhar
e eu desabei sobre a mesa.
A última coisa que vi
foi a janela bater
como que a ferir minha cara.
Respirei fundo,
pedi um copo d’água
e parti.